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SONHO INDÍGENA

           Eu vi Carlos na rua do comércio, cheio de flechas artesanais para vender. Seus olhos corriam lá onde não podia alcançar.
          Por que tinha que ser assim?
          Vender flechas, ser visto como um empecilho. Caminhar indefinidamente por estas estradas... Daqui a pouco minhas estradas estarão cobertas de concreto... Minhas terras invadidas... Cada pequeno pedaço é cobiçado, é motivo de brigas, confusões, arbitrariedades.
          Carlos fixa seus olhos nos prédios. Seu pensamento ecoa dentro de mim. “Eles acham que sou criança. Eles acham que eu não penso.”
          “Índio não tem vontade própria, mas eu tenho”.
“Tenho vontade de ter um carro, e sair estrada a fora, buscando o mundo, matas... Matas não há.”
          A avenida subia morro acima. Avistava lá em cima uma porção de índios, descendo em busca, talvez de si mesmos, pois a cidade não os receberia. É assim, índio é índio e mais nada.
          Se índio pensa?
          Não, índio está ali, absorto em sua própria pobreza, catando restos nas latas de lixo.
          Carlos limpou o suor do rosto. Indagava o sentido de sua existência, o motivo de tanta negligência.
          “Como será ser gente branca?”
          “É andar correndo rua afora, com roupas de toda cor, pano de todo jeito, e ter um carro.”
          “Homem branco... mulher de toda cor.” (risos).
          Queria catar os restos de sua gente, unir pedaço por pedaço e, passar uma borracha em cima de seu sofrimento.
          Ninguém sabe o que se esconde atrás das capoeiras, dos matagais indígenas...
          Lá no campo, a solidão é tão grande. Parece que o mundo inteiro fugiu da gente.
          A chuva derrama louca no capim, sem indagações, nem nada, e tira lágrimas do coração de Carlos.
          Carlos tinha que chorar.
          “O mundo inteiro se esqueceu da gente. É tudo tão mesquinho. Índio não pensa, é que nem criança. Será...?”
          “Queria ser dotô. Dotô de brigar na justiça pelos direitos que num tenho.”
          Amanhecer todo sol, sem medo de perder o céu. Deixar de correr pelas ruas, indefeso, mórbido e sujo, sem ter ninguém à espera.
          Lembrou-se de Mariá.
          Mariá era linda. Olhos cor da noite e mais nada.
          A formosura despontava em seu corpo. Seus sonhos mal despertavam para a vida. E a vida era só aquilo... índios, casebres e índios rua afora, pedindo, pelas latas de lixo, pelos restos dos brancos.
          A vida era homem branco, açoitando, engolindo, violentando índios.
          Um dia, Mariá enforcou-se numa árvore de espinhos. Acovardou-se diante da vida, indefesa à violência do branco.
          “Mariá entristeceu-me, nem tive tempo de tomá-la em meus braços e amá-la.”
          Arremessou uma pedra no ar, enfurecido com a idéia de tantas injustiças acometidas contra Mariá, contra sua gente.
          Era impossível viver relegado à passividade, ao esquecimento, à indiferença.
          Índio só tem valor quando está em galeria de arte. Aí todo mundo fala em “preservar”, zelar pelo patrimônio. Índio “patrimônio, uma coisa de valor, peça de museu.”
          “Nossa realidade é tão dura, tão cruel, que todos preferem ignorar nossa existência.”
          Novamente, outro amanhecer, e lá em cima, no alto da rua, despontavam pessoas vestidas de trapos, sacolas vazias e nada de anormal parecia estar acontecendo. O sol esquentava devagarzinho seus corpos arrepiados pelo frio da manhã. A grama molhada reluzia aos raios do astro rei. Ouvia-se o silêncio, a paz, eterno sonho de uma vida melhor.
          Pareciam irreais desprovidos de alma, somente corpos a transitar pelas ruas.
          Carlos chorava coração apertado com lembranças de Maria. Com saudade da vida que desejou ter...
          Um caminhão descia a ribanceira, e todos seguiam seu caminho rumo à cidade, menos Carlos que para, olha por alguns segundos o caminhão... Esqueceu-se de tudo, inclusive do sonho de ser doutor, Carlos morreu embaixo do caminhão. Seu corpo foi arrastado para o barranco da estrada e, lá ficou esquecido, eternamente esquecido.
          Ninguém soube da morte de Carlos, foi apenas mais um índio que morreu e que não fará a menor falta...
          Um dia, quando toda sua raça não mais existir, falarão nos colégios tantas coisas lindas a respeito dessa gente. Guardarão a sete chaves, em museus, pertences indígenas, farão escavações para descobrir sua origem. Não entenderão a causa de seu desaparecimento.
          Lembro-me de Carlos lá na rua do comércio, ele vendia flechas e sonhava com dias melhores.
 Autora: Helena Rosali
Crônica vencedora do concurso de contos e crônicas da cidade de Dourados no ano de 1989.

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